Casos de adoecimento têm se tornado constantes, especialmente entre profissionais da área
Ver o dia amanhecer e ter a sensação de que a vida está nublada foi a definição que a técnica de enfermagem Vanessa Soares, de 37 anos, deu ao relatar os anos em que viveu com depressão. Depois de ficar por um ano negando que algo de estranho estava acontecendo com a saúde mental dela, em 2008, após a primeira tentativa de suicídio, procurou por um psiquiatra e o diagnóstico foi síndrome de Burnout. Naquele período, Vanessa trabalhava em dois empregos como técnica de enfermagem e ainda fazia faculdade. “Quando comecei a trabalhar em dois hospitais, com jornadas de trabalho extensas, achei que daria conta. Com o tempo, ficava angustiada ao chegar ao trabalho, me perguntava o porquê de estar ali e à noite não conseguia dormir, remoendo os acontecimentos do dia, uma imensa ansiedade.”
A síndrome de Burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é um distúrbio psíquico. Sua principal característica é o estado de tensão emocional e estresse crônico provocado por condições de trabalho físicas, emocionais e psicológicas desgastantes. De acordo com Lourdes Machado, presidente do Conselho Regional de Psicologia e psicóloga especialista na área de saúde pública e saúde mental, o sintoma típico da síndrome de Burnout é a sensação de esgotamento físico e emocional que se reflete em atitudes negativas, como ausências no trabalho, agressividade, isolamento, mudanças bruscas de humor, irritabilidade, dificuldade de concentração, lapsos de memória, ansiedade, depressão, automutilação, pessimismo, baixa autoestima.
Definido por Vanessa como “anos cinzas”, a técnica de enfermagem e graduanda do curso de enfermagem já passou por todas as etapas de sofrimento que uma pessoa com depressão enfrenta, o que resultou em três tentativas de suicídio. O sentimento de solidão, de falta de pertencimento e de acolhimento fez com que sentisse uma dor que, segundo ela, nenhum analgésico tirava. “Tinha fácil acesso aos medicamentos e, com isso, me automedicava para dormir, mas quando acordava, a dor na alma vinha junto e não tinha vontade de me levantar cama. Em 2008, quando tive a primeira caída no fundo do poço também veio a primeira tentativa de tirar a vida, queria dar fim àquela dor. A segunda e a terceira foram em 2009 quando também tive uma recaída muito forte e esse processo ficou até 2010. Foi uma fase muito sombria, foram os piores anos que vivi na depressão, tive mais baixos que altos.”
TRANSTORNOS
O esgotamento profissional, a ansiedade e a depressão sofridos por Vanessa é realidade na vida de muitos profissionais da área de enfermagem. De acordo com dados de 2017, do 1º Boletim Quadrimestral sobre Benefícios por Incapacidade da Secretaria de Previdência/Ministério da Fazenda, no Brasil, transtornos mentais e comportamentais são a terceira causa de incapacidade para o trabalho, correspondendo a 9% da concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez.
Segundo a presidente do Conselho Regional de Psicologia, situações de grande estresse no ambiente de trabalho com carga horária elevada, ambiente de trabalho que exige do funcionário um desempenho além do que é possível, situações de assédio moral e de assédio sexual, são situações que comprovadamente estão relacionadas com o aumento da prevalência de transtornos mentais.
Atualmente, no Brasil, são cerca de 2,5 milhões de profissionais da enfermagem, técnicos e enfermeiros, dentro das unidades de saúde. Cerca de 70% do quadro de empregados dos hospitais, clínicas, UPAS e Postos de Saúde são compostos por eles e 88% desses profissionais são mulheres.
De acordo com a presidente do Coren, Carla Prado Silva, a maioria das mulheres que atuam como enfermeiras tem tripla jornada de trabalho. “No meu trabalho como fiscal do Conselho, vi muitos ambientes sem infraestrutura para atender o profissional: sem local para descanso, lazer e atendimento psicológico. Já encontrei hospitais onde os enfermeiros descansavam em colchões velhos dentro dos banheiros. Para agravar esse quadro, a terceira jornada de trabalho em casa é um fator que propicia o desencadeamento da depressão.”
Lourdes Machado acrescenta que, além das situações de grande estresse em casa e no trabalho, existem situações de assédio moral e de assédio sexual que comprovadamente estão relacionadas ao aumento da prevalência de transtornos mentais. Foi o que aconteceu com Érika Ferreira, de 39 anos, há 15 enfermeira. “Desde o início da minha profissão, trabalhava em dois hospitais, um durante o dia e outro à noite, e sempre com plantões nos fins de semana. No início, achava bom, não tinha nenhum sintoma de depressão, mas com o passar do tempo senti um desgaste muito grande, pois o setor do neonatal tem muitas situações que mexem muito com o nosso emocional, mas mesmo assim, não eram essas as situações que mais me desgastavam.”
O que a desgastou, segundo Érika, foi quando a direção do hospital a convidou para coordenar o CTI neonatal. “Nunca fui coordenadora, não tinha experiência e manifestei que não queria, mas assumi esse cargo a contragosto, o que falei não foi ouvido, as minhas potencialidades como profissional não foram respeitadas.” A bomba relógio explodiu em 2014, após dois anos trabalhando nessas condições. Com muita ansiedade, insônia, sem vontade de levantar da cama, sem prazer em se distrair nas horas de lazer, a enfermeira não viu apoio psicológico dentro do hospital e procurou um psiquiatra particular.
Depois disso, foi afastada por 40 dias e ao passar no setor da psiquiatria da medicina do trabalho, foi reavaliada recebendo mais tempo de afastamento. Após meses afastada, ao voltar ao trabalho, Érika foi realocada ao posto de origem, o banco de leite.
Após o retorno, a relação de trabalho demorou a se estabilizar. Érika desenvolveu uma desconfiança perante os líderes e teve que recorrer à psicoterapia para ressignificar o trauma vivido.
Humanizar a profissão
Enquanto sofrem com problemas de saúde mental, trabalhadores da área sentem a falta de assistência psicológica para lidar com o sofrimento do outro sem adoecer
A enfermagem é uma ciência centrada no cuidado. O profissional da enfermagem envolve habilidades para administrar os aspectos técnicos com conhecimentos fisiológicos, psicológicos e culturais no processo de tratamento dos pacientes. De acordo com a Política Nacional de Humanização – Humaniza SUS – a humanização é a valorização dos usuários, trabalhadores e gestores no processo de produção de saúde. Porém, não existe lei regulamentada que garanta a esses profissionais um suporte psicológico nas instituições para lidar com o sofrimento humano sem o absorver.
Segundo levantamento do Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais, Coren, a maioria dos hospitais em Minas Gerais não oferece nenhum tipo de assistência psicológica, cursos e treinamentos que abordem a saúde mental dos profissionais da enfermagem.
Essa realidade tem início desde a formação acadêmica. Na maioria dos cursos, os estudantes são preparados para os cuidados técnicos da profissão e quando a humanização da profissão é abordada, o estudo se limita apenas dos enfermeiros em relação aos pacientes. Para o estudante de enfermagem Daniel Albino, de 25 anos, na faculdade há uma considerável abordagem sobre a humanização da profissão para com o paciente, mas não é visto com a mesma ênfase na humanização do profissional.
“A enfermagem não pode ser apenas tecnicista. É necessário que proporcione aos futuros enfermeiros o entendimento psíquico, político e social da profissão. Temos uma disciplina de saúde metal, mas não aprofunda as questões dos profissionais. Chegamos ao mercado sem saber lidar com o sofrimento do outro e evitar que isso nos adoeça. Percebo que tem aumentado a abordagem do assunto sobre a depressão, mas é sazonal, apenas no mês de setembro, e isso deveria ser o ano todo para que os alunos tenham o real entendimento da humanização da profissão”, ressalta Daniel.
Coautora do livro Não aguento mais!, a enfermeira e professora universitária Lucinete Santos considera importante ter disciplinas que possam trabalhar o conteúdo sobre cuidados paliativos, psicologia e políticas públicas em saúde mental para que o futuro profissional tenha em mente já na sua formação que irá prestar cuidados aos pacientes em condições diversas.
INFORMAÇÃO
Para entender melhor a realidade das doenças do campo emocional, é necessário saber a quantidade de profissionais diagnosticados para, dessa forma, levantar soluções mais eficazes de prevenção e combate. Porém, a divulgação da quantidade de profissionais da enfermagem que estão passando por algum tipo de adoecimento mental ainda é tabu nas instituições.
Procurados pela reportagem, em nota, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, Fhemig, informou que tem em seu quadro de pessoal – auxiliares, técnicos e enfermeiros – 6.225 profissionais lotados nas 20 unidades assistenciais, entre elas o Pronto Socorro João XXIII, o Hospital Infantil João Paulo II e a Maternidade Odete Valadares. A nota informa que a Gerência de Segurança e Saúde do Trabalho da Fhemig mantém um serviço psicológico de atendimento aos profissionais, além de uma equipe de mediação de conflitos e assédio moral.
Mas foi negada a informação do número de profissionais, mesmo preservando a identidade deles, diagnosticados com doenças do âmbito mental. O motivo, segundo a nota, é o sigilo dos prontuários e a Comissão de Ética teria que acionar o sistema de dados, sendo que ainda não foi feito nenhum estudo interno que analisasse amplamente esses dados.
PREVENÇÃO
Depois de passar por três estágios, Daniel Albino percebeu que muitos dos seus futuros colegas de profissão já estavam em quadros depressivos. Diante de toda pressão que os estagiários também passam, em junho de 2018, após sair de um estágio e sentir que estava entrando em depressão, resolveu procurar uma atividade física. “Entrei para uma academia e descobri que a dança era uma terapia. Seis meses depois, já estava dando aulas em uma academia. Eu me descobri na dança.”
Daniel tem aproveitado os conhecimentos adquiridos na dança e na segunda formação acadêmica, educação física, para promover a saúde dos colegas de trabalho por onde ele faz estágio. Na UPA de Vespasiano, Região Metropolitana de Belo Horizonte, o estudante percebeu a carência de atividades de promoção à saúde e promoveu uma manhã de atividades físicas com cerca de 20 profissionais da enfermagem, limpeza e administrativo. “Vejo que os profissionais precisam de atividades de bem-estar, isso é refletido no bom atendimento aos usuários do SUS. O resultado foi positivo, os enfermeiros ficaram mais relaxados e produtivos.”
Após passar por um período de estresse, em 2018, a enfermeira Danielle Veridiana buscou alternativas para driblar a doença. Concursada há 11 anos, a enfermeira trabalha no setor de neonatologia no Centro Materno Infantil (CMI) Juventina Paula de Jesus, em Contagem, RMBH. “Já vi muita coisa durante esse período e conclui que deveria fazer algo por mim e pelos outros para minimizar as interferências que levam os profissionais a se sentirem mal. Hoje, promovo no meu setor grupos de leitura, bate-papos e aconselhamentos de rotinas saudáveis para não se sentirem tão sobrecarregados e sozinhos. Não vejo as atividades como cura, mas como prevenção.”
Falta de políticas públicas
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a jornada de 30 horas para profissionais na saúde, já que longas jornadas levam ao adoecimento dos profissionais. A espera pela votação do Projeto de Lei 2295/00 há 20 anos, na Câmara dos Deputados, tem atrasado a solução do adoecimento mental. O PL fixa jornada de trabalho de 30 horas semanais para enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. De acordo com a Presidente do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, Lourdes Machado, algumas profissões têm especificidades que fazem da redução da jornada de trabalho muito mais que um sinal de desenvolvimento social, uma verdadeira necessidade para assegurar e proteger a saúde física e mental dos profissionais e de quem depende deles.
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