O nome do debate no sábado (22) à noite do Fliaraxá já era uma frase poética: “Escrever o sentimento do mundo”. Claro, remetia aos versos de Carlos Drummond de Andrade na poesia que deu nome ao seu livro de 1940. “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, escreveu o itabirano. E as mãos que foram escolhidas para debater o tema já vinham carregadas de significado. A negritude da mineira Conceição Evaristo e a africanidade de José Eduardo Agualusa.
É a primeira vez que Conceição participa do Fliaraxá. E foi recebida com um entusiasmo inusitado. Ao ser anunciada, recebeu os aplausos de uma plateia de pé, emocionada, que não esperava suas palavras, já reverenciavam sua história de vida, sua obra, sua existência. A ênfase do público arrancou uma brincadeira de Agualusa: “Sei que todos estão aqui pra ouvir a Conceição”. E emendou num misto de humildade e reverência: “E eu também”. O escritor angolano contou que há pouco tempo num festival literário, na cidade francesa de Toulouse, presenciou a mesma emoção do público ao ver Evaristo.
Ouça o podcast sobre a mesa “Escrever o sentimento do mundo”
“Infelizmente, minha literatura foi reconhecida primeiro fora do Brasil e só assim me respeitaram por aqui”, contou a escritora, que disse que o preconceito contra os negros no Brasil está em todos os lugares, “há uma inteligência que não acredita na mulher negra brasileira”. Levando o público às gargalhadas, disse que agora “está lacrando”.
A escritora contou que gosta muito de voltar a Minas. “Saí da minha casa (no Morro do Cafezal, em Belo Horizonte), mas carrego comigo meus princípios, minha vida”. Perguntada, pela mediadora Leila Ferreira, sobre o significado da palavra na sua vida, Conceição remeteu-se aos tempos de infância, “minha casa tinha uma chuva de palavras. Mineiro adora contar histórias e minha mãe ficava mostrando as nuvens e inventando contos a partir delas e nasceu ali o meu encantamento”. Ela falou também da importância das suas referências literárias e dos poemas de Drummond, que foi o primeiro poeta que leu na vida. Citou também os textos de Jorge Amado, “principalmente os livros que escreveu quando era comunista”.
Memória
“Nós afrodescendentes somos especialistas em usar a memória. E a literatura é que possibilita externar essas lembranças”, falou Agualusa. Para ele, “o Brasil tem sido cobrado à uma revolução. E quando pensamos que estamos vivendo uma, ocorre algo monstruoso como a situação atual”. Contou que no exterior se tem uma noção mais clara do que acontece no Brasil. “Não acho que aqui seja entre direita e esquerda, aqui é uma luta entre inteligência e estupidez, entre civilização e barbárie”.
O escritor disse acreditar que o Brasil nunca foi descolonizado. “Os descendentes da família real nunca saíram do poder”. O angolano disse os negros nunca foram incorporados na sociedade. “Essa sala mesmo não representa o Brasil”, provocou.
(Kerison Lopes)
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