São mais ou menos 22h de um sábado gelado. Afonso Borges, criador do Fliaraxá, está sentado ao lado de Valter Hugo Mãe no palco do Cine Tiradentes no Tauá Grande Hotel, lugar que recebeu os grandes momentos desta edição do Festival. Ele brinca: “Valter, o que você vai tirar desta cartola agora?”, numa referência às surpresas que o escritor sempre apresenta. O autor de A Desumanização então se desveste do paletó, dá uma esticadinha na manga esquerda da blusa e faz uma revelação:
“Ontem eu pedi ao Ignácio Loyola Brandão pra escrever a palavra amigo num papel. Aí, eu fui ali embaixo na feirinha, onde tem um pessoal que está tatuando e pedi que fizessem esta tatuagem aqui no braço com a letra do Ignácio”.
Primeiro, a plateia parece não ter entendido uma homenagem tão real e profunda. Depois, caiu em aplausos. Ignácio subiu ao palco, ficou sem palavras. Naquele determinado momento, o público parece ter lavado a alma, tudo passou a valer a pena, como já disse o poeta. A pessoa desconhecida da cadeira ao lado virou o melhor amigo, confidente, pai e mãe. Valter mudou o rumo da história das coisas.
Ouça o podcast sobre a mesa em homenagem a Valter Hugo Mãe
Pouco antes, o ator Thiago Lacerda tinha feito a leitura de um conto do escritor, “As mais belas coisas do mundo”. No livro, certo dia, o menino fica sem resposta quando o avô lhe pergunta: Quais são para ti as coisas mais belas do mundo? São as coisas de verdade, como tanto quanto se vê e toca? Ou as coisas invisíveis, aquelas que pensamos, sentimos e sonhamos?
Os que estavam ali naquela sala, a partir de agora, têm a certeza de que é a amizade, os laços que os ligam a outra pessoa. Ficaram com inveja. Querem todos ser Valter Hugo Mãe.
Abaixo, leia o bate-papo que o site fez com o escritor:
Valter Hugo Mãe e Machado de Assis ficaram mais próximos neste VII FliAraxá, né? Já pensou em como seria um encontro com o Machado aqui em Araxá? Você̂ chegando lá no Grande Hotel e ele sentado tomando o café da manhã…
Machado não tem muito ar de ficar conversando com qualquer um, não é? Não sei assim se ele teria uma abordagem muito fácil. Mas eu gostaria de saber o que ele pensa deste Brasil de hoje. Imaginemos que ele pudesse regressar e analisar em que se transformou o mundo agora. Eu teria muita curiosidade em saber o que que a acidez dele, aquele pensamento supercrítico haveria de inferir. Porque eu tenho a sensação de que o Machado aponta para direções éticas, ele é um crítico profundo, tem algumas indicações éticas acerca deste espírito humano conflituoso, paradoxal. Eventualmente, ele acreditou que a humanidade não tem jeito, não né? Não sei se ele teria uma grande surpresa com a estranheza contemporânea. Mas uma das coisas que o Machado de Assis tem de edificante, construtivo e no fundo de esperançoso é que ele ao mesmo tempo vendo toda esta dúvida, todo este ceticismo, ao mesmo tempo ele foi alguém que procurou deixar bases para o que vem a seguir. A criação da Academia Brasileira de Letras é exatamente isso, a tentativa de estruturar algo que se possa perpetuar no tempo e sobretudo que reforce uma cultural, uma intelectualidade e a importância do pensamento. E isso não é típico de alguém que não tem esperança, de alguém que entenda que não valha a pena. De alguma forma, ele achando que a humanidade não vai ter jeito, também acha que a competência de cada um ou compromisso de cada um deve ser ético, deve ser no sentido de tentar influir numa melhoria qualquer. Então, eu gostaria e debater com ele isso. Essa coisa estranha de, como um, todo somos uma falha um projeto que vai falhando, mas, individualmente, podemos ser agentes de muita maravilha.
Qual o seu balanço do Fliaraxá? Você está feliz?
Claro que estou. O Festival foi feito pra eu ficar feliz. Eu e Machado de Assis estamos muito felizes. Creio que posso falar em nome dos dois. Eu acho que este ano a passagem pelo Fliaraxá de pessoas como a Conceição Evaristo, que tem um testemunho precioso que é de importância vital para toda a humanidade; a passagem da Heloisa Starling, que é uma cabeça brilhante, que precisa ser clonada e levada a todos os condomínios do Brasil e do mundo; a presença do Antonio Carlos Secchin, do Ignácio Loyola Brandão, que é sempre um instrutor, que é sempre um indivíduo fantástico. O Sérgio Abranches, que é um pensador com clareza e um indivíduo com uma lição de humildade tremenda, que me fascina. Uma das poucas coisas que consegui estar do começo ao fim foi no talk show do Evandro Affonso Ferreira e adorei porque acho o Evandro uma cabeça original, não é parecido com nada nem ninguém, profundamente genuíno e com um assombro de genialidade. A apresentação do disco do Celso Adolfo, que é um compositor que eu admiro; a passagem do Edney Silvestre falando da adaptação fantástica do romance dele pra a televisão. Mas, muito do melhor do Festival eu ainda vou ganhar consciência porque eu levo muito livros e vou aprofundar meus conhecimentos de alguns autores e mesmo de autores que não participaram, mas que estiveram presentes e me presentearam com seus livros. O Festival ainda vai ter uma ressonância na minha cabeça, um lastro durante as próximas semanas e meses.
No seu instagram, você criou uma hashtag #VHMtatuagens, uma brincadeira para marcar pessoas que lhe mostram frases suas que elas eternizaram em seus corpos. Como você recebe e processa estas homenagens?
Eu acho que não pode haver maior elogio, não é? As pessoas que fizeram e surgem diante de mim mostrando, eu sinto vontade de dar dinheiro para as pessoas, de agradecer compensando, pedindo desculpas, desculpa ter feito isso com você… Eu acho uma coisa muito doida e incentivo extremamente as pessoas a não fazerem tatuagens com as minhas frases ou com as frases de alguém. Eu adoro tatuagens. Agora perdi um pouco o medo, eu fiz uma e doeu demasiado, mas agora quero fazer mais porque julgo que perdi o medo e vou então fazer mais algumas coisas. Acho ótimo que as pessoas façam, mas que façam alguma coisa consciente de que vão passar a vida inteira suportando aquilo. Então, é preciso que façam coisas que não as desiludam. Eu espero durar ainda uns anos, então eu fico muito responsabilizado porque eu não gostaria que as pessoas se sentissem desiludidas comigo. É como se sentissem desiludidas com seu próprio braço, seu próprio peito, onde puseram, onde colocaram uma frase minha. De repente, se eu virar um mistério que já não as fascinam, parece que elas se destituem da beleza do seu próprio corpo.
E quando aparecer alguém, tipo, com o seu rosto tatuado no braço…
Não. Aí é o fim da picada. Aí eu acho que não pode, aí eu vou pagar uma cirurgia pra remoção…
Você fez vários desenhos exclusivos para o Fliaraxá que acabaram sendo usados em toda a identidade visual do Festival. Os desenhos se tornaram também uma exposição, que ficou aberta para a visitação. Mas, existem poucas imagens do Machado de Assis, né? Como foi então desenhá-lo? Buscou referências reais, mas usou também da sua imaginação?
Primeiro eu não sabia muito bem o que fazer. Achei que Araxá poderia ser uma terra de pássaros, então primeiro eu fiz um monte de pássaros. Eu gosto de desenhar pássaros porque é fácil. Depois, fiquei pensando que talvez pudesse incluir livros, desenhar livros, fazer alguma brincadeira com capas de livros das primeiras edições do Machado e depois, de repente, pensei: e se eu fizesse o Machado propriamente dito, se eu encontrasse um modo de o Machado existir, ser um rosto do Fliaraxá. Então fui ver a internet e encontrei uma fotografia que é particularmente bonita, mas as versões que encontrei eram pálidas, em que o Machado parece demasiado branco e por isso então destituído da sua herança negra. E as primeiras versões que eu fiz não tinham atenção com a tonalidade de peles. Daí eu desenhei os primeiros e mandei para o Afonso [fundador e criador do Fliaraxá]. E ele me enviou uma foto de um projeto que propõe uma imagem mais real do Machado, negro. E então eu fui ver e fiquei muito impactado. E tive que refazer, e fiz outros desenhos. Eu não podia deixar que o Machado fosse tão branco ainda que os meus desenhos sejam um cartoon, um desenho tão destituído de talento que é não senão uma graça.
Você se lembra quando leu um primeiro livro de Machado de Assis? Quando foi, em qual circunstância você teve este primeiro contato com a obra do Machado?
Foi um conto. Foi O Alienista, a primeira coisa que eu li. Eu acho que quando queremos escrever poesia e temos 14, 15, 16 anos somos muito seduzidos pela questão da loucura, da alienação e achamos talvez que apenas os loucos podem ser poetas e a realidade não é boa para a poesia, não é sedutora. E então eu li várias coisas, o Albert Camus, o Franz Kafka eram os meus autores favoritos. E alguém me mandou ler O Alienista, disse: olha isso é excelente, é uma retórica brilhante acerca de quem podem se os loucos e de quem podem ser os sãos. E, imediatamente, eu entendi que o Machado se inscreve na grande literatura mundial.
Você esteve na FliAraxá do ano passado. Recentemente veio a BH para o Sempre um Papo e fez uma “mini-turnê” por Rio e SP antes de voltar a Araxá. Você está cansado? De onde vem a energia, como cuida da saúde? Não é hora de pensar em achar um cantinho, morar um tempo no Brasil?
Estou muito cansado, cada vez mais com a sensação de estar mais adoentado, com tonturas, com alguma incapacidade de cumprir um ritmo, desenvolvendo cada vez mais um desajuste qualquer que eu preciso de ver com médico e não tenho nem tempo de me dedicar a esta pesquisa, este cumprimento dos exames para saber o que posso ter. Eu adoraria poder morar no Brasil. E quero muito acreditar que em 2020 eu vou ter um tempo calmo. Eu preciso muito desde tempo calmo, preciso muito voltar a ter uma rotina qualquer, voltar a estar em casa, mais tempo em casa do que fora de casa, que é algo que a maior parte dos seres humanos experimenta que é passar mais tempo na sua terra do que fora dela.
O escritor é um ser triste?
Não, de forma alguma. Acho que, mesmo os que escrevem sobre uma certa alegria, são indivíduos incomodados, insatisfeitos. A arte é uma manifestação de insatisfação, de inquietude. Não no sentido melancólico do termo porque isso não é verdade. E eu posso ter páginas, passagens dos meus livros que são efetivamente tristes e melancólicas, mas também tenho páginas que são sobretudo furiosas e tenho páginas que são hilariantes. Mas, todas as páginas, todos os meus livros e os meus textos partem de uma sensação de que a vida não é suficiente, de que o que existe não é suficiente e de que alguma coisa pode ser encontrada e que não vai ser encontrada senão através da arte.
(Rafael Minoro)
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